Ariel negra e o racismo camuflado de “opinião”

"A Pequena Sereia" negra? Como ousam?

“A Pequena Sereia”, é uma conhecida animação da Disney, lançada em 1989. A história da sereia Ariel que queria ser humana para conquistar o príncipe Eric fez tanto sucesso, que em 1998 virou série de televisão, com trinta e um episódios, distribuídos em três temporadas. Com a onda de produções live action, a escolha da atriz e cantora negra Halle Bailey para interpretar Ariel vem causando rebuliço desde 2019.

Infância sem representatividade

Quem foi criança na década de 90 certamente se lembra que, antes das plataformas de streaming, com um vasto cardápio de opções a um clique, para assistirmos aos filmes que gostávamos precisávamos de um aparelho chamado videocassete. Eu nem me lembro quantas vezes assisti ao filme de “A Pequena Sereia”, em fita VHS – sempre rebobinando depois – assim como os demais desenhos da Disney. Como toda criança, tinha uma fértil imaginação e, quando entrava no mar ou em alguma piscina, já imaginava que era uma sereia. E é aqui que entra a importância da representatividade.

Na animação da Disney, Ariel tem longos cabelos ruivos. O teaser do live action, lançado no Youtube nesta segunda, dia 12 de setembro, apresentou mais de um milhão de dislikes.[1] Qual seria o motivo? A escolha de uma cantora e atriz negra, chamada Halle Bailey, para interpretar a sereia.

Desde 2019, quando rumores sobre a escalação de Bailey começaram a surgir, diversos ataques a esta escolha vieram à tona. Pessoas indignadas começaram a se manifestar na internet, com opiniões do tipo “a Disney arruinou minha infância” ou “a Ariel sempre foi ruiva”.

Que tipo de infância estas pessoas querem que as novas gerações tenham? Uma infância sem qualquer tipo de representatividade e diversidade? Uma infância tal qual a dos anos 80/90, que tinha Xuxa como a “Rainha dos Baixinhos”, com Paquitas exclusivamente loiras?[2] O ideal seria uma infância repleta de personagens brancas?

Vale lembrar que a Disney só apresentou uma princesa negra como protagonista em um desenho animado em 2009[3] e, mesmo assim, em “A Princesa e o Sapo” Tiana passa quase todo o filme como uma sapinha (mais um assunto problemático para refletirmos em momento).

O filme da sereia Ariel nem foi lançado e Bailey já foi atacada nas redes, com comentários racistas como: “que sereia feia da p*** é essa”, “cadê os traços finos de Ariel?” O incômodo em uma sociedade que vive o mito da democracia racial é o fato de termos como personagem principal uma sereia negra – um ser que, inclusive, sequer existe. Para disfarçar o racismo, usam o argumento de que a produção deve respeitar a forma como o desenho descrevia a personagem. Com isso, chegou-se ao cúmulo de um perfil no twitter embranquecer a imagem da atriz, fato que foi aplaudido por algumas pessoas: “ele consertou a Pequena Sereia”[4]. O que precisa de conserto é a sociedade racista[5].

Não é opinião, é racismo

Algumas pessoas tentaram argumentar dizendo que não era racismo, apenas o desejo de que o live action fosse fiel à história original. Ora, mal sabem elas que a história original de Ariel escrita por Hans Christian Andersen no século XIX – que retrata seu amor não correspondido por um homem chamado Edvard Collin -, sequer tem um final feliz: a sereia se lança ao mar e vira espuma. O desenho animado muda completamente o final, para que tenhamos o clássico dos filmes de princesas Disney: “e viveram felizes para sempre”. Aliás, quantas vezes você já lemos uma história e, no cinema, foi adaptada de forma diferente? Quantas vezes, ao ler um conto ou romance, imaginamos uma personagem de uma forma e, na tela foi retratada diferente?

Não há outra explicação para os ataques a não ser racismo.

Quase vinte anos antes de Cinderella de 2015, já havia sido produzido um live action desta história, que trazia Brandy, Whitney Houston e Whoopy Goldberg no elenco. Quando era criança, minha princesa preferida era a Cinderela e, quando assisti a esta adaptação pela primeira vez, com cerca de 13 anos, em nenhum momento achei um absurdo que a princesa fosse negra. Muito pelo contrário: achei o filme lindíssimo e assisti diversas vezes. No entanto, não ganhou tanto destaque – muitas pessoas sequer conhecem o longa – quanto a adaptação estrelada por Lily James.

Vamos a outro exemplo: Pinóquio. O desenho de 1940 do boneco de madeira que quer ser um menino de verdade traz uma Fada Azul loira de olhos azuis. No live action recém-lançado, ela é interpretada pela atriz negra Cynthia Erivo, que foi alvo de diversos ataques racistas disfarçados de “opiniões”: “tá esquisita pra po** nem tem defesa, safada, a fada tá literalmente calva isso tá estranho pra cassete mais por algum motivo tenho que achar essa po** bonita”. O “argumento” é sempre o mesmo quando temos personagens negras: “o problema não é a cor de pele e sim a descaracterização da personagem clássica”.

Falsas simetrias e whitewashing

A cor da pele, no caso da Fada Azul e de Ariel não é elemento essencial para a narrativa da história. Portanto, qual o problema em termos mulheres negras interpretando estas personagens?

Diferente seria se fizéssemos um Pantera Negra ou um Super Choque com um atores brancos. Da mesma forma os cabelos destas personagens: uma Fada – um ser que, assim como a sereia, não existe – pode ter longos cabelos lisos, cacheados, crespos ou ser careca[6]. Por isso, comparações como estas não passam de falsa simetria.

É importante mencionar que, lamentavelmente, há diversos casos de whitewashing[7] no cinema. Para ficarmos no campo de live actions, temos o caso de Rooney Mara, que em “Peter Pan” interpretou Tiger Lily, uma personagem indígena. Percebemos que o que incomoda realmente são personagens negras em papeis de destaque e não o alegado “não era assim no original”.

Representatividade importa

Enquanto diversos ataques racistas acontecem, temos milhares de meninas negras se emocionando ao assistirem ao trailer, falando para suas mães: “eu me pareço com ela”. É impossível assistir aos vídeos de reações dos pequenos e pequenas e não se emocionar junto.

Foram décadas e décadas assistindo desenhos com total ausência de personagens negros ou as retratando de forma caricata, em um total racismo recreativo. Assim, nas palavras de Adilson Moreira, “os grupos majoritários reproduzem estereótipos com o propósito de moldar a percepção da realidade social a partir de certa perspectiva (…)”. Os estereótipos fazem com que se internalizem percepções negativas, fazendo com que filmes e desenhos reflitam a “ideia de que brancos podem desempenhar quaisquer lugares (…) negros só podem estar em lugares específicos”[9].

Representatividade importa e é necessária. Como já disse Angela Davis, em uma sociedade racista, não basta não sermos racistas, é preciso que sejamos antirracistas. Sigamos na luta!

Notas de rodapé

[1] https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2022/09/12/com-halle-bailey-como-ariel-teaser-de-a-pequena-sereia-recebe-serie-de-dislikes-apos-lancamento.ghtml Acesso em 13 set. 2022.

[2] Em entrevista, Xuxa se defende das acusações de ausência de Paquitas negras: “Não é legal as pessoas botaram a culpa no meu colo, dizer a Xuxa só tinha paquita loira, não. A Xuxa só tinha o que as crianças queriam ver naquela época, o que era imposto para as crianças como uma coisa normal e natural”. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/xuxa-diz-so-ter-paquita-loira-por-ser-um-padrao-de-beleza-na-epoca-so-tinha-o-que-as-criancas-queriam-ver/ Acesso em 14 set. 2022.

[3] O primeiro longa animado da Disney foi “Branca de neve e os sete anões”, lançado em 1937.

[4] https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/09/14/noticia-diversidade,1393570/suspenso-perfil-que-deixou-branca-atriz-negra-de-a-pequena-sereia.shtml

[5] Nossa Constituição dispõe no artigo 5º, XLII, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

[6] É o chamado color-blind casting: escolha de elenco quando a etnia, cor de pele não são elementos essenciais para a construção da personagem. Seu oposto é o color-conscious casting.

[7] Whitewashing é a escalação de atores e atrizes brancos para interpretarem personagens de outras etnias.

[8] Basta lembrarmos da importância que foi o longa “Pantera Negra”, não só para crianças e adolescentes, como também para adultos que não tiveram em sua infância nenhum super heroi com quem pudessem se identificar.

[9] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. 1ª. Ed. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. pp. 61/62.

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